O Brasil é o país que concentra a maior
parcela da principal floresta tropical do mundo, a Amazônia. Bolívia,
Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela
são os demais países onde incide a floresta. Do território nacional,
cerca de 61% é constituído pela Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas,
oeste do Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins),
com uma população estimada em 20 milhões de pessoas.
A floresta é um mundo de gentes,
olhares, saberes, cores, cheiros e histórias. A abundância de recursos
florestais, minerais e hídricos a torna alvo dos mais diferentes
interesses em variadas dimensões: econômicas, sociais, políticas e
ambientais. E em escalas: local, regional, nacional e global, onde o
direito à propriedade privada sobre a terra tem se sobreposto à posse
ancestral.
Um mundo de água integra a paisagem da
vasta Amazônia. Água de igarapés, furos e rios. Muitos rios. Sem falar
da água da chuva. As principais capitais, Manaus e Belém, cresceram de
costas para esse mundo das águas. A sufocar tudo que foi possível em
nome da especulação imobiliária. Um rio-mar de gentes inunda a região.
O olhar do colonizador a sintetizou sob
uma perspectiva exótica: natureza exuberante, eldorado, paraíso perdido,
vazio demográfico ou inferno verde. A população originária, quando
citada nos relatos, sempre foi tratada como inferior. Uma forma de
legitimar a instalação da “civilização” interpretam alguns observadores.
Horizonte que os discursos midiáticos dos estados centrais atualizam.
Há cidades na Amazônia. A Amazônia é uma
floresta urbana, enfatizou a professora Bertha Becker na década de
1970, baseada em dados censitários. Belém é uma delas. A principal
capital da região é quase uma ilha. Dos 505.823 km2, 332.037 km2 é
região insular (65,64%), formada por 43 ilhas. Sob um clima quente
úmido, numa temperatura média de 30º C, é o comércio e a prestação de
serviço que fazem a cidade se mover economicamente. A hidrografia é
rica: furos, igarapés, rios e baías. Tanto em sua parte continental
quanto na insular. Baía do Guajará, baía do Marajó, baía de Santo
Antônio, baía do Sol, rio Guamá, rio Murubira, rio Mari-Mari, igarapé do
Tucunduba são alguns dos recursos que compõem a península.
O Tucunduba corta vários bairros de
Belém, entre eles, a Terra Firme. Nascido na década de 1950, o bairro
ganhou corpo a partir da ocupação de terras públicas em áreas aqui
tratadas de baixadas (favelas), onde predomina a arquitetura da
palafita. O bairro que tem cerca de 60 mil habitantes acumulou áreas da
Universidade Federal do Pará (UFPA), da antiga Faculdade de Ciências
Agrárias do Pará (FCAP), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa), e do Museu Paraense Emílio Goeldi. Boa parte da população da
área é composta por migrantes internos ou do Nordeste, em particular do
Maranhão.
No território estigmatizado pela
violência, os serviços elementares ou inexistem ou são precários:
saneamento (drenagem e tratamento dos esgotos domiciliares, industriais e
comerciais), fornecimento de água, coleta e tratamento de lixo. O mesmo
canal que aproxima os produtores de hortifrutigranjeiros do arquipélago
de Marajó, e outras regiões, é o mesmo possibilita o tráfico de drogas.
Baixo nível de escolaridade, desemprego, subemprego e violência
conformam a aquarela da pobreza.
Relatório da Caixa Econômica Federal
(2003) elaborado pelo Centro Sócio Econômico da UFPA, Curso de Serviço
Social e Departamento de Políticas e Trabalhos Sociais, sob a
coordenação da professora Maria José Barbosa e consultoria do professor
Alfredo Wagner Berno de Almeida, indicava que 96,28% da população da
região metropolitana de Belém absorvem 24,80% da renda, enquanto uma
minoria, isto é, 3,72% da população absorvem 75,20% da renda gerada. A
renda familiar no bairro da Terra Firme oscila entre meio a dois
salários mínimos. A informalidade absorve a maior parte da força de
trabalho.
Desde a década de 1990, o Tucunduba
passa por um projeto de macrodrenagem. No começo da década de 2000, o
projeto foi laureado com o prêmio “Caixa Melhores Práticas em Gestão
Local”, e foi apresentado como exemplo de novas práticas de gestão da
cidade na Conferência Habitat, da Organização das Nações Unidas (ONU). A
política de saneamento básico integrou várias dimensões: geração de
renda, sustentabilidade, empoderamento local, gênero e
multiculturalismo. Além da Terra Firme, o Tucunduba atravessa os bairros
do Marco, Guamá e Canudos, um perímetro da cidade considerado zona
vermelha pelos órgãos de segurança do estado.
Em 2009, a região integrou o Território
do Fórum Social Mundial. A relação entre a coordenação do evento e a
população do bairro foi tensa. Jaime Soares, na época mestrando em
Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), refletiu sobre o
assunto. Soares avalia que a coordenação do FSM de Belém tentou ocultar a
situação delicada em que vive o entorno do território escolhido para a
realização do Fórum.
Sobre a situação de conflito o autor
alerta para a tentativa de ocultação da região, e a não participação das
pessoas do entorno na agenda de ações do FSM. O artigo registra que nos
mapas divulgados pela organização do evento e dos órgãos públicos, a
periferia é apresentada como área verde. O pagamento de taxas e a
solicitação de crachás pelos seguranças nos locais de acesso aos debates
são indicados como pontos de contradição da organização local do FSM.
Soares sublinha que a não inclusão
cultural, econômica e social da Terra Firme ao Fórum fere o principio de
orientação da rede, que em linhas gerais, visa o não colonialismo e o
combate ao neoliberalismo. O autor enfatiza, ainda, a contradição da
coordenação local do Fórum, que ao invés de promover a inclusão da
população do bairro, usou de expediente conservador, que se traduz em
mobilizar a Secretaria de Segurança para isolar a Terra Firme das áreas
da UFRA e da UFPA, locais da realização dos seminários e atos culturais
durante o Fórum.
O controle social sobre a região incluía
toque de recolher, e proibia festas de aparelhagem, equipamentos
sonoros que embalam as festas de brega. Apesar do estigmatizado signo da
violência que pesa sobre o bairro, há na Terra Firme inúmeras
manifestações que buscam a amplificação da cidadania, a exemplo do
Coletivo Casa Preta, Polo São Pedro e Boi Marronzinho.
Casa Preta – Terra Firme ou Montese? O
nome exato do bairro é uma dúvida desnecessária, pois basta circular
pelos arredores do bairro que rápido o corpo percebe a rigidez da terra,
ao lado do rio que contorna o ambiente, e incorpora o nome popular da
área.
Atualmente a região passa por um
processo de combate e prevenção a violência. A ação da PM privilegia
lugares considerados de risco, aos moldes das UPPs do Rio de Janeiro. No
mesmo cenário há algum tempo, ações culturais protagonizam a ampliação
da cidadania. No mesmo local pode-se encontrar experimentos de
instituições de pesquisa e ensino, a exemplo do projeto Território da
Memória, do Museu Paraense Emilio Goeldi. No entanto, as pautas dos
jornais insistem em contemplar o aspecto negativo do lugar. Os
principais jornais de Belém, Diário do Pará e O Liberal lideram pesquisa
em andamento da Agência Nacional dos Direitos da Infância (Andi), em
matérias sobre adolescentes em situações de conflito com a Lei.
Observador um pouco mais cuidadoso
encontrará dimensões interessantes para além da superfície das pautas
factuais. Exemplo disso é a realização de oficinas de construção de
instrumentos musicais e percussão da Casa Preta. A iniciativa tem como
um dos ponta de lança o ativista cultural Anderson de Souza Ferreira,
mais conhecido como “Don Perna”. O migrante da periferia de Campinas,
estado de São Paulo, aprendeu o que é cultura nas ruas. Ferreira além de
percussionista é ciberativista e dj. Fala com entusiasmo dos mestres de
percussão e capoeira com quem teve contato no processo de aprendizado
sobre o universo da cultura de matriz africana.
É esta a opção do Coletivo “Casa Preta”:
cultura de matriz africana. A ONG integra a Rede Mocambos, que atua nos
estados do Pará, Maranhão, Amapá, Acre, Porto Velho e Manaus. Um dos
objetivos da rede é incentivar e reafirmar a identidade da cultura
negra. É este segmento que configura boa parte da população do bairro. O
horizonte das ações possui como pano de fundo motivar a reflexão sobre a
cidadania, cultura, paz, negritude, literatura, cinema e música.
O Projeto Bloco Firme, selecionado pelo
Programa Territórios de Paz do Ministério da Cultura no ano de 2011, por
via do Programa Mais Cultura é uma das âncoras do coletivo. A inciativa
do ministério colabora para a geração de recursos econômicos para os
projetos, dando estabilidade às pequenas iniciativas de incentivo a
grupos artísticos independentes, grupos étnicos de tradição cultural e
pequenos produtores culturais. O projeto resulta de uma parceria com a
Justiça Federal através do Programa Nacional de Segurança Pública e
Cidadania (Pronasci), que visa oportunizar o acesso à produção, ao
consumo e ao reconhecimento de bens culturais.
Casa Preta-Bloco Firme acontece no
espaço “Polo São Pedro” que é vinculado à Igreja São Domingos de Gusmão,
liderado pelo Padre Bruno, histórico ativista pela garantia dos
direitos da criança e do adolescente. Cinco eixos orientam a atuação do
coletivo, são eles: a) Cultura Ancestral – realiza oficinas de dança
afro, construção de tambores, formação do Bloco Firme; b) Cultura Afro
Contemporânea – contempla a cultura hip hop e eventos culturais; c)
Cultura Digital – incentiva a apropriação tecnológica a partir do
conhecimento de softwares livres; d) Formação Política – atua com
diferentes metodologias em comunidades urbanas e rurais para difusão,
construção e desenvolvimento pautado em modelos de colaboração
comunitária, com contornos de filosofia afro quilombola; e)
Empreendimentos Solidários – busca a criação da microempresa “NEGOOCIO”
que oferecerá serviços de desenvolvimento na web (sites, e-comerce,
blogs e outros), e a articulação da Rota de Escambo Baobá.
Don Perna que é o oficineiro para a
construção de instrumentos e de percussão, acredita que a partir das
oficinas, exibição de filmes e debates, troca de experiências com
parceiros locais e de outros estados é possível provocar a reflexão
sobre a identidade cultural dos jovens. Ele acredita que a prática
experimental pode levar a uma compreensão e valorização dos ritmos e
danças que fazem parte da alma antropofágica da diversidade cultural do
país. E a partir daí estimular uma nova abordagem crítica sobre a
história e a consciência do indivíduo dentro da comunidade.
As oficinas ocorrem por cerca de duas
horas, duas vezes por semana. Sempre no início das noites de terça e
quinta, e aglutinam uns 15 jovens, entre 12 a 22 anos. Yasmin Minami
soma 18 anos, faz o curso médio na escola pública Mário Barbosa. Tem
feição indígena. É uma das meninas que tocam a alfaia, um instrumento
típico do maracatu de Pernambuco. A adolescente lembra que reconheceu em
si outras culturas, outras pessoas que não imaginaria. “O projeto ajuda
a estimular os valores culturais da pessoa que sou. Passei a reconhecer
o espaço em que nasci e vivo de outra maneira,” avalia a jovem. No mês
de abril ela e mais duas adolescentes participaram de um encontro
cultural em Minas Gerais. Foi a primeira vez que viajaram de avião.
O Polo São Pedro cede espaço para as
oficinas do Casa Preta. Nele ocorrem desde 2006, um cipoal de atividades
culturais que visam incrementar a autoestima da juventude do bairro.
Tem o status de ponto de cultura onde são realizadas agendas culturais
no campo do teatro, canto coral, violão, flauta, percussão e dança. Um
dos grupos surgidos foi o Sementes da Terra.
O casal Odiléia e Edson Lima é
responsável pelos projetos do polo, que demoraram cerca de seis meses
para serem formatados. Ele buscava, via cultura, uma forma diferente de
evangelizar e debater a cidadania num território marcado pela violência e
tráfico de drogas. Os oito oficineiros são voluntários. No ano de 2011
as experiências chegaram a mobilizar perto de 300 pessoas.
Mas, no ano de 2012 as atividades ainda
não foram iniciadas. Odiléia Lima informa que o Ponto de Cultura deveria
ter recursos para três anos. No entanto, o polo recebeu somente durante
um ano. A coordenação ainda aguarda recursos do governo federal e
pleiteia, via projetos, colaboração em outras fontes.
Boi Marronzinho – Na lavoura cultural da
terra firme existem terreiros de umbanda, blocos de carnaval, reggae,
quadrilha de São João, boi bumbá e institutos de cultura. Um dos mais
antigos é o Boi Marronzinho. Soma perto de 20 anos.
Como outras iniciativas, surgiu como
ferramenta para enfrentar a violência e ampliar a cidadania. Emergiu na
passagem Brasília, da inquietação de um senhor conhecido como Cici e da
dona Nazaré. Casal radicado no lugar há mais de 50 anos. Ao cabo da
viagem, parece que um rio de gente que busca dignidade corre no bairro
da Terra Firme.
* Daniel Leite Jr é estudante do 3º
período de Jornalismo da Universidade da Amazônia (Unama) e bolsista da
Agência Unama pelo Direito da Criança e do Adolescente (Agência Unama).
Rogério Almeida é professor da Unama e coordena o projeto de extensão
Agência Unama.
(Carta Maior)
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Enviado por Tania Pacheco:http://racismoambiental.net.br/2012/06/terra-firme-um-quilombo-urbano-em-belem/#.T9Hzj6Tic7M.facebook
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