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Antropólogo João Pacheco de Oliveira "A maior ofensiva contra a política indigenista da história brasileira"

Cerco Articulado

Não há rebelião indígena, e sim diferentes problemas criados pelos brancos. É a maior ofensiva contra a política indigenista da história, diz antropólogo

08 de junho de 2013 | 16h 26

Wilson Tosta, Rio de Janeiro
RIO - Pesquisador há quatro décadas das culturas indígenas brasileiras, o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor do Museu Nacional da UFRJ, afirma que a impressão de uma rebelião indígena no País não é real: "Os vários problemas do setor não têm conexão entre si". O que é unificado, avalia, é a maior ofensiva contra a política indigenista da história brasileira, com propostas de revisão de demarcações e da legislação que regula a área, com ações no Congresso, na mídia e junto a setores do governo. Enfrentamento com fazendeiros no Mato Grosso do Sul, hidrelétricas em áreas indígenas e confrontos com sojicultores no Norte, conflitos com grileiros no Nordeste e rixas com pequenos produtores no Sul formam o quadro descrito pelo acadêmico, no qual se destaca o forte crescimento do agronegócio, que exige sempre novas terras para cultivar, em modelo de "expansão sem fim".
Índios protestam em Brasília - Ed Ferreira/Estadão
Ed Ferreira/Estadão
Índios protestam em Brasília
Pacheco avalia que o governo Dilma Rousseff até agora não definiu como vai agir em relação à questão, mas ao mesmo tempo não sinalizou que apoiará propostas como a de transferir para o Congresso Nacional o poder de demarcar terras indígenas, defendida pela bancada ruralista. Ele acha que o governo está dialogando com os setores envolvidos e não parece que queira retroceder na política de demarcações, que garantiu a sobrevivência dos ianomâmis em Roraima, por exemplo.
A legislação indigenista brasileira, diz, é avançada e elogiada no exterior, e revogá-la colocaria o Brasil na incômoda companhia dos países que reprimem minorias como os curdos, o que daria ao País o "Nobel de genocídio". Ele também rebate argumentos do senso comum contra os índios, como o de que são menos de 1 milhão de pessoas e têm reservas que somam 13% do território nacional. "As áreas indígenas não são apenas destinadas aos indígenas, em grande parte são reservas ambientais", diz. "E não são terras dos indígenas, são terras da União."
A que atribuir a crise na área indígena nessa magnitude, agora?
Talvez precisasse saber exatamente de que crise você fala. Os vários fenômenos ocorridos são coisas diferentes, a unidade entre eles não é real. Os mundurucus estão preocupados com a instalação da barragem lá na região do Tapajós. Há uma outra dinâmica que é a dos índios do Sul do Brasil. Existem problemas na área do Mato Grosso do Sul... Enfim, são questões bastante diferentes. Elas estão sendo homogeneizadas porque, no momento, há uma força muito grande contra a legislação indigenistas brasileira, contra as normas relativas à demarcação de terra, que pretende agrupar essas questões como uma razão única.
Seria ofensiva contra a política indigenista?
Uma ofensiva violenta. Nunca aconteceu algo de tal proporção e com tal capacidade de mobilização política junto a setores do governo, junto à opinião pública. É um fato realmente inédito na história do País. Do ponto de vista da assistência aos índios, tudo está acontecendo segundo as normas habituais e segundo o ritmo normal das tensões locais e da resolução dessas tensões. Mas há a impressão de uma rebelião indígena em curso. Isso não tem nenhum fundamento. Agora, do outro lado, tenta-se uma reviravolta nas normas legais, com muita força e absoluto equívoco. A legislação brasileira é bastante avançada quanto ao reconhecimento dos direitos das minorias, em certos lugares uma legislação exemplar em termos internacionais. Essas acusações colocadas por setores econômicos, setores políticos, são totalmente inverídicas.
Argumenta-se que o Brasil destina 13% de seu território a menos de 1 milhão de índios.
As áreas indígenas não são apenas destinadas aos indígenas. Em grande parte são reservas ambientais, santuários ecológicos desrespeitados: Xingu, a área ianomâmi, algumas regiões da fronteira do Javari, Rio Negro. E não são terras dos indígenas, são terras da União. As terras indígenas não são esses 13% que se coloca. Aliás, o próprio argumento é bastante questionável, porque a concentração fundiária no Brasil deve levar 0,2% da população a ter 80% das terras agricultáveis. Então, essa justificativa seria pela reforma agrária imediata.
Pode-se dizer que no Norte o principal impacto sobre as áreas indígenas é de grandes obras como hidrelétricas, e no Sul ele vem do agronegócio?
Na Amazônia também existe um impacto grande da produção rural. A soja hoje está em Roraima. Além disso, há uma série de outras investidas, entre elas de madeireiras estrangeiras e de companhias de mineração também internacionais, como as africanas. Mas, se for pensar no Centro-Oeste, não há dúvida de que a pressão maior é dos investimentos da soja. Estão destruindo extensas regiões do País, de forma até irrecuperável. As poucas áreas preservadas são frequentemente habitadas por indígenas, que só estão preservadas porque são terras indígenas ou porque existe terra indígena no entorno. As outras foram consumidas por esse processo de desenvolvimento predatório, muito linear e muito rápido, que destrói as condições da região. Já no Sul do Brasil as condições são bem diferentes. Os conflitos com indígenas envolvem pequenos proprietários rurais, que têm articulação com o mercado, uma produção com financiamentos, uma agroindústria, de certa forma. No Nordeste a situação é variada, mas frequentemente os índios brigam contra grilagens, grandes propriedades, latifúndios muitas vezes desocupados.
O forte crescimento do agronegócio estaria por trás da tentativa de mudar a lei?
Acho que sim. O agronegócio opera por expansão, vai crescendo, incorporando novas terras, nem tanto modificando a tecnologia, mas ocupando com o mesmo tipo de procedimento. É uma expansão sem fim. Isso, de alguma forma, tornou mais fácil promover a invasão das áreas indígenas. Muitas vezes as terras são demarcadas nominalmente como indígenas, mas exploradas por outros. E uma política de proteção em relação a essas populações não deve somente se preocupar com a terra, mas também com as condições de sobrevivência delas: a geração de riqueza, a qualificação deles como cidadãos, o pertencimento à sociedade nacional.
Como tem sido a postura do governo Dilma nesse sentido?
O governo Dilma ainda não definiu muito bem como vai agir em relação a isso. Em algumas áreas ocorreu paralisação. Mas, ao mesmo tempo, houve um empenho no Mato Grosso do Sul em resolver a situação dos terenas e dos guaranis. Acho que essas sinalizações são muito importantes para arrefecer ânimos e fazer as pessoas pensarem um pouco sobre o que está sendo praticado.
Mas a postura do governo não é dúbia? Ele às vezes fica nas mãos da bancada ruralista no Congresso.
Talvez em outro setor, como a análise política, isso possa ser observado. Há pressões sendo feitas para reformular a política indigenista, para que se perca um avanço na legislação, nas práticas administrativas. Mas acho que o governo ainda não retrocedeu. Está dialogando com essas forças, tentando aplicar a legislação.
E não há disposição de mudar a legislação por parte do governo?
Espero sinceramente que não. Seria colocar o governo, vamos dizer, muito mais à direita dos governos militares. Seria na verdade desproteger as populações nativas, algo a que hoje ninguém se atreveria - com exceção de alguns países do Oriente Médio que reprimem minorias como os curdos... Mas acho que o Nobel de genocídio seria uma coisa terrível.
Quais foram os resultados da política de demarcações?
Nesse sentido, a situação no Brasil nos últimos 30 anos caminhou bem. Muitas terras foram regularizadas, povos que estavam sob violento assédio, cerco, ameaça, conseguiram se estruturar mais. Até o dado demográfico recolhido pelo IBGE mostra uma expansão dos indígenas. Mas a demarcação não se realiza por si só. Também exige em outro momento uma política de uso dos recursos de maneira adequada, assessorada pelo Estado de forma lúcida, para que esses recursos não sejam devastados. Isso é o chamado desenvolvimento sustentável.
A existência dessas reservas salvou alguma etnia?
O caso mais evidente, de grande proporção, é o dos ianomâmis. Nos anos 1990, eles chegaram a ter sua área invadida pesadamente por garimpeiros, que a estavam destruindo da forma mais rudimentar possível. O reconhecimento da criação da terra indígena ianomâmi evitou essa situação de extermínio, de prostituição, de violência, e assegurou uma certa possibilidade de eles se adaptarem, de serem desenvolvidos programas de assistência dentro da reserva. Menciono o caso ianomâmi, mas é o modelo geral. Foi assim no Parque do Xingu.
Mato Grosso do Sul é onde se concentra a maior pressão?
O problema é disseminado. Anos atrás, em Roraima, havia muita beligerância, perseguição, marginalização dos indígenas por forças políticas do Estado. Depois do reconhecimento da Raposa Serra do Sol, da demarcação da área pelo governo brasileiro e da ratificação pelo Supremo Tribunal Federal, foram retiradas algumas pessoas que estavam na região e o problema acabou. Imagino que a mesma coisa vá se passar no Mato Grosso do Sul, onde o grau de belicosidade contra os indígenas é de fato mais forte. Os guaranis são uma população bastante numerosa, os terenas idem. E ao mesmo tempo tem o agronegócio querendo novas terras. Na medida em que o governo brasileiro reconhece direitos, a tendência é que num primeiro momento ocorram conflitos, muita reação por parte dos que podem vir a perder lucros não permitidos pela lei, pela Constituição. Mas essas coisas se ajustam.
  Fonte:http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,cerco-articulado,1040280,0.htm


Indicadores de sustentabilidade, por José Eli da Veiga

Publicado em maio 16, 2013 por 
RESUMO
Esta descrição retrospectiva de um debate científico com quase 40 anos mostra a necessidade de uma trinca de novos indicadores de sustentabilidade capaz de avaliar simultaneamente resiliência ecossistêmica, qualidade de vida e desempenho econômico.
Palavras-chave: Sustentabilidade, Indicadores, Desenvolvimento sustentável, Ecodesenvolvimento, Economia ecológica.

ABSTRACT
This retrospective description of a scientific debate with almost 40 years shows the necessity of a set of three new sustainability indicators able to simultaneously evaluate the resilience of ecosystems, quality of life and economic performance.
Keywords: Sustainability, Indicators, Sustainable development, Ecodevelopment, Ecological economics.



Introdução
EMBORA CAPEIEM debates sobre a noção de sustentabilidade em quase todas as áreas do conhecimento, eles obrigatoriamente têm suas raízes nas reflexões de duas disciplinas consideradas científicas: ecologia e economia.
Na primeira, não demorou a surgir oposição à inocente ideia de que a sustentabilidade ecossistêmica corresponderia a um suposto “equilíbrio”. Controvérsia que com ainda mais rapidez desembocou em solução de compromisso, com a ascensão do conceito de resiliência: a capacidade que tem um sistema de enfrentar distúrbios mantendo suas funções e estrutura. Isto é, sua habilidade de absorver choques, a eles se adequar, e mesmo deles tirar benefícios, por adaptação e reorganização. Um ecossistema se sustenta se continuar resiliente, por mais distante que esteja do equilíbrio imaginário.
Foi essa convergência teórica que levou à comparação entre a biocapacidade de um território e as pressões a que são submetidos seus ecossistemas pelo aumento do consumo de energia e matéria por sociedades humanas e suas decorrentes poluições. Comparação que dá base à Pegada Ecológica como indicador de tão fácil compreensão que se torna cada vez mais popular.
Nada parecido ocorreu no âmbito da economia, no qual só pioram as divergências entre três concepções bem diferentes. Para começar, a conhecida colisão entre sustentabilidade “fraca” e “forte”. A primeira é a que toma como condição necessária e suficiente a regrinha de que cada geração legue à seguinte o somatório de três tipos de capital que considera inteiramente intercambiáveis ou intersubstituíveis: o propriamente dito, o natural/ecológico e o humano/social. Na contramão, está a sustentabilidade “forte” que destaca a obrigatoriedade de que pelo menos os serviços do “capital natural” sejam mantidos constantes.
Uma crucial variante dessa segunda corrente rejeita o que em ambas mais há de comum: a ênfase nos estoques. Com o mesmo foco nos fluxos que há meio século viabilizou o surgimento e a padronização do sistema de contabilidade nacional, e que permitiu a mensuração do produto anual de cada país, cuja versão interna (PIB) se tornou o barômetro do desempenho socioeconômico. Suas mazelas foram severamente criticadas, especialmente por só considerar atividades mercantis e ignorar a depreciação de recursos naturais e humanos. O que justamente provocou um processo de busca por correções e extensões com o objetivo de transformá-lo em indicador de “bem-estar econômico sustentável”, depois rebatizado “indicador de progresso genuíno”.
A rigor, é contra todas as anteriores que se ergue a perspectiva biofísica, por negar que a economia seja um sistema autônomo, e entendê-la como subsistema inteiramente dependente da evolução darwiniana e da segunda lei da termodinâmica, sobre a inexorável entropia. Nessa visão, só pode haver sustentabilidade com minimização dos fluxos de energia e matéria que atravessam esse subsistema, e a decorrente necessidade de desvincular avanços sociais qualitativos de infindáveis aumentos quantitativos da produção e do consumo.
Tal algaravia explica a ausência de um indicador econômico de sustentabilidade que desfrute de mínima aceitação. No entanto, a partir da adoção da Agenda 21 na Rio-92, a demanda por esse tipo de indicador havia sido fortemente impulsionada. E em 1996 ela parecia ter achado uma trilha segura com a adoção dos “Princípios de Bellagio” (IISD, 2000). Contudo, os balanços da subsequente proliferação de indicadores reunidos por Lawn (2006) mostraram que os métodos propostos para a avaliação e o monitoramento da sustentabilidade permaneciam elusivos.
Nessas circunstâncias, houve forte propensão a selecionar alguns poucos índices que, juntos, permitissem uma avaliação da sustentabilidade em suas várias dimensões. E a mais interessante proposta desse tipo surgiu nas recomendações de Murray Patterson (2002, 2006) ao governo da Nova Zelândia. Ele advogou que a dimensão econômica fosse medida pelo Indicador de Progresso Genuíno (GPI na sigla em inglês), a dimensão social pelo “New Zealand Deprivation Index”, e a dimensão ambiental por um novo índice composto a ser construído, que cobrisse todos os aspectos do ambiente biofísico e do funcionamento ecológico.
Este artigo chega a uma conclusão diferente, embora confirme a ideia de que a sustentabilidade exige mesmo uma trinca de indicadores, pois ela só poderá ser bem avaliada se houver medidas simultâneas da dimensão ambiental, do desempenho econômico, e da qualidade de vida (ou bem-estar). As principais diferenças estão na necessidade de: a) substituir o PIB por uma medida de renda domiciliar disponível, em vez de se adotar alguma proposta de PIB corrigido ou ajustado, como é o caso do GPI; e b) buscar um indicador sintético de qualidade de vida que incorpore as evidências científicas trazidas por esse novo ramo que é a economia da felicidade.
O recurso utilizado para expor os argumentos que justificam tal conclusão é uma descrição retrospectiva, em quatro etapas, dos quase 40 anos de busca por indicadores de sustentabilidade.

O ancestral comum de 1972
O debate científico sobre indicadores de sustentabilidade foi desencadeado há quase 40 anos por um trabalho que continua amplamente visto como “seminal”. Trata-se do capítulo “Is growth obsolete?”, publicado em 1972 por William D. Nordhaus e James Tobin, no quinto volume da série Economic Research: Retrospect and Prospect, do National Bureau of Economic Research (NBER), dos Estados Unidos.
Como diz o título, o foco não estava propriamente em indicadores, e sim na discussão sobre uma hipotética obsolescência do crescimento econômico. E a argumentação se ancora na teoria econômica canônica para refutar um tipo de contestação do crescimento econômico que crescera nos anos 1960, e que se tornou particularmente aguda nos Estados Unidos entre 1968 e 1972. Ela aparece logo no primeiro parágrafo do texto de Nordhaus & Tobin (1972, p.1) com a seguinte passagem que atribuem ao ecólogo Paul Ehrlich: “Devemos adotar um estilo de vida que tenha como objetivo o máximo de liberdade e felicidade para o indivíduo, não um máximo Produto Nacional Bruto” (PNB).1
Mesmo que nenhum outro contestador do crescimento seja citado por Nordhaus & Tobin ao longo das 80 páginas desse trabalho, eles frequentemente usam o plural ao se referirem àqueles que estavam colocando em dúvida que o crescimento futuro pudesse ser desejável e possível (“those who question the desirability and possibility of future growth” [ibidem, p.4]). E é fato que muitos economistas já haviam feito sérias críticas à obsessão pelo crescimento econômico. Por isso, foram eles os verdadeiros alvos de Nordhaus & Tobin, mesmo que a dupla tenha evitado mencioná-los.
Não se pode incluir nesses alvos o famoso relatório ao Clube de Roma intitulado Limits to Growth, pois é do mesmo ano (Meadows et al., 1972). Mas é preciso lembrar que a primeira edição do clássico A sociedade afluente, de John Kenneth Galbraith, havia sido lançada em 1958. Esse livro até pode ter sido ignorado por muitos economistas por considerarem o autor no máximo um bom comentarista político. Nada de parecido poderia ter ocorrido, contudo, com Ezra J. Mishan, ao publicar, em 1967, uma obra-prima sobre os custos do crescimento econômico, traduzida no Brasil com título tragicamente equivocado.2
A controvérsia científica sobre o crescimento como dogma certamente foi inaugurada pelo longo e acirrado debate que se seguiu entre Mishan e Wilfred Beckerman. Mas já haviam surgido bem antes os mais incisivos ataques contra aquilo que posteriormente passou a ser chamado de “mania” ou “fetiche” do crescimento. E menos motivados pelos custos apontados por Mishan, do que pelo avanço da consciência sobre seus limites socioambientais. Particularmente nas grandes obras pioneiras publicadas desde os anos 1960 por William Kapp, Nicholas Georgescu-Roegen e Kenneth Boulding.3
Para responder a esses verdadeiros alvos ocultos, Nordhaus & Tobin não deixaram de abordar o efeito do aumento populacional sobre o crescimento da produção, assim como a inevitabilidade da perda (waste) de recursos naturais causada por esse crescimento. Todavia, foi a questão da qualidade das medidas usadas para avaliar o crescimento econômico (primeira questão escolhida) que acabou tendo muito mais impacto intelectual, tornando esse trabalho a primeira referência obrigatória de qualquer reflexão sobre indicadores de sustentabilidade.
A pretensão da dupla foi demonstrar que o progresso indicado pelas medidas resultantes da contabilidade nacional convencional (como PNB ou PIB) não é um mito que evapora quando substituído por uma medida que seja de fato orientada para o bem-estar. (“The progress indicated by conventional national accounts is not just a myth that evaporates when a welfare-oriented measure is substituted” (ibidem, p.13)).
Para tanto, introduziram uma série de correções no método de cálculo do produto (nacional ou apenas interno), de maneira a – por um lado – retirar componentes que não contribuem para o bem-estar; e – por outro – acrescentar alguns dos que o fazem, mesmo que não entrem no cálculo convencional por não fazerem parte da produção. Chegaram assim à construção de uma “Medida de Bem-estar Econômico”, ou MEW na sigla em inglês, que é uma medida de consumo em vez de produção.
Evidentemente, o primeiro passo dessas complicadas correções que ocupam as 35 páginas do primeiro apêndice foi se voltar ao produto líquido, em vez do bruto, considerando a absoluta necessidade de depreciações. Logo depois é introduzida a ideia de um nível de consumo per capita que não excede a tendência de aumento da produtividade do trabalho, chamado pelos autores de “sustentável”. Para eles, se o consumo per capita exceder esse nível dito “sustentável”, significa que ele está avançando sobre parte dos frutos do progresso futuro.4
Na conclusão, comparam os resultados obtidos para a medida de bem-estar econômico (MEW) aos dados sobre o produto líquido (NNP na sigla em inglês), em vez de compará-los ao PNB (GNP na sigla em inglês), o que teria sido bem mais coerente com o objetivo do trabalho. Se não tivessem usado tal subterfúgio, certamente teriam chegado à conclusão inversa. E o pior é que hoje chega a ser difícil acreditar que a dupla não tenha incluído estimativas de nenhum dano ambiental ou depleção de recursos naturais nos cálculos do que chamaram de “MEW-S”: “Medida de Bem-estar Econômico Sustentável”.
Mesmo assim, nada impede que esse conceito possa ser considerado como o mais remoto ancestral de todos os exercícios posteriores de se corrigir ou ajustar o PNB (ou o PIB) para se chegar a alguma medida agregada de sustentabilidade do desenvolvimento.

A primeira grande virada em 1989
Foi somente dezessete anos depois do seminal capítulo de Nordhaus & Tobin (1972) que surgiu o “Índice de Bem-estar Econômico Sustentável” (Isew na sigla em inglês), graças a uma das mais importantes elaborações do profícuo economista ecológico Herman E. Daly. Nesse caso, incluída em livro que resultou de parceria com o teólogo John B. Cobb Junior.: For the Common Good (1989).
A rigor, nesse longo intervalo, houve outras duas contribuições que precisam ser mencionadas por terem sido de muita ajuda para a reflexão crítica de Daly. Por um lado, a pioneira iniciativa do Japão de calcular seu “Bem-estar Nacional Líquido” (NNW, na sigla em inglês), publicado em 1974;5 por outro, uma obra de 1981, que também caiu no esquecimento, de um economista grego já falecido, que em 1989 tornou-se primeiro-ministro: Xenophon Zolotas.6
Ao contrário desses precários estudos anteriores, o Isew proposto por Daly & Cobb Junior teve enorme repercussão prática. Foi depois calculado em ao menos onze outros países: Canadá, Alemanha, Reino Unido, Escócia, Áustria, Holanda, Suécia, Chile, Itália, Austrália e Tailândia. E em 2004 se transformou no Indicador de Progresso Genuíno (GPI na sigla em inglês), criado pela ONG americana Redefining Progress (http://www.rprogress.org).
Além de detalhada apresentação dos dois índices (Isew e GPI), o livro Os novos indicadores de riqueza, de Jean Gadrey & Florence Jany-Catrice (2006), exibe três gráficos que ilustram bem os declínios relativos do bem-estar sustentável por habitante entre 1974 e 1990, nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Suécia. Para o caso dos Estados Unidos, cálculos para um período de 40 anos (1950-1990) foram acrescentados na segunda edição do livro For the Common Good, revista e atualizada em 1994. O Isewper capita, que em 1950 era 71% do PNB per capita, caíra para 42% em 1990. Em outras palavras, enquanto o PNB per capita havia aumentado 121%, o Isew só subira 30% (Daly & Cobb Junior, 1994, p. 463).
O grande problema da abordagem Isew, e que piorou no GPI, é que a precificação de danos ambientais, de ganhos de lazer e de trabalho doméstico ou voluntário, por exemplo, continua a ser altamente especulativa, por mais que economistas convencionais e alguns ecológicos se esforcem em aperfeiçoar seus métodos de valoração. Sempre será um exercício arbitrário atribuir grandezas monetárias a prejuízos ou ganhos que não têm preços determinados por mercados. Na falta de alternativa, é claro que um juiz deve preferir que o valor de uma indenização seja calculado por algum desses métodos. Mas coisa muito diferente é pretender que o mesmo será aceito pela sociedade quando se trata de atribuir grandezas monetárias a danos causados por poluições, ao trabalho de pais e mães na criação de seus filhos, ou aos cuidados familiares com os mais idosos.
Além disso, correções do PNB ou do PIB até podem levar a um razoável indicador que chame a atenção para a evolução divergente entre o desempenho de uma economia nacional e o bem-estar ou a qualidade de vida que ela foi capaz de gerar. Mas isso tem muito pouco a ver com a ideia de sustentabilidade, que, por sua vez, se refere necessariamente ao futuro. Mostrar que a taxa de aumento do bem-estar é inferior à taxa de aumento do PNB ou do PIB nada diz a respeito da possibilidade de que essas duas coisas sejam sustentáveis.
Nesse sentido, foi ótima a mudança, em 2004, da denominação do indicador que havia sido criado em 1989 por Daly & Cobb Junior. Ele certamente pode permitir uma avaliação bem razoável do “progresso genuíno” que vem sendo obtido por uma nação, mesmo que tal progresso não possa ser entendido como um aumento “sustentável” de bem-estar.
Em suma, por mais que tenha avançado em relação ao ancestral de 1972, a virada de 1989 não chegou a gerar um indicador que pudesse efetivamente avaliar a sustentabilidade.

Três movimentos paralelos a partir de 1995
O que há de comum nos índices até aqui mencionados é a ideia de partir dos dados das contabilidades nacionais que tradicionalmente visam ao cálculo do produto (seja ele interno ou nacional, bruto ou líquido) para se chegar a algum indicador de bem-estar econômico, ou de progresso genuíno. Mas não de sustentabilidade. Por isso, era de esperar que outros caminhos fossem explorados no esforço de obter indicadores de sustentabilidade.
Tal situação deu origem a três outras abordagens: a) construção de grandes e ecléticas coleções, ou dashboards; b) índices compostos ou sintéticos, com várias dimensões, cujas variáveis costumam ser alguns dos dados pinçados das mencionadas coleções; c) índices focados no grau de sobreconsumo, subinvestimento ou excessiva pressão sobre recursos.
Um bom panorama da proliferação de indicadores nessas três direções está em Bellen (2005). Ela foi tão intensa que gerou uma espécie de nevoeiro intelectual sobre a mensuração da sustentabilidade (ambiental ou do desenvolvimento), apontada em Veiga (2009a). Mas que três anos antes havia tido um tratamento bem mais detalhado e muito mais profundo na coletânea editada por Philip Lawn (2006). Dela já se podia extrair a constatação de que não havia surgido (e provavelmente nunca surgiria) um indicador que revelasse simultaneamente o grau de sustentabilidade do processo socioeconômico e grau de qualidade de vida que dele decorre. Mesmo que possam ser dois lados da mesma moeda, nada sugere algum método contábil ou estatístico capaz de gerar uma única fórmula sintética em que ambos estejam expressos.
Em consequência, podia-se concluir a partir de uma leitura de Lawn (2006) que a melhor maneira de utilizar tais indicadores na orientação de política deveria requerer necessariamente algum tipo de consórcio. Por exemplo, usar algum dos indicadores de bem-estar em dueto com algum outro mais focado na pressão sobre os recursos. Isso talvez pudesse mostrar se um país estaria se aproximando ou excedendo seu nível macroeconômico ótimo. Ou, ainda mais crucial, a que distância ele estaria de seu ponto máximo de sustentabilidade. A comparação de dois indicadores como esses talvez fosse até capaz de revelar possibilidades de declínio econômico e de catástrofe ecológica.
Essa perspectiva de adoção de dois ou três índices, todavia, só poderia esbarrar na impossibilidade de encontrá-los. Isto é, de escolher indicadores que revelassem alguma coisa de significativo e de forma coerente. Quanto à primeira das abordagens citadas – a das coleções/dashboards -, nem há necessidade de justificativa. Podem ser ótimos como bases de dados, mas são tão heterogêneos que, a rigor, nem poderiam ser entendidos como indicadores. Quem tiver dúvida é instado a consultar o melhor deles, fruto de trabalho tripartite: Unece/OECD/Eurostat (2008).
Por isso, aqui só serão consideradas as outras duas abordagens: índices compostos/sintéticos e índices focados no grau de pressão humana sobre os recursos.
Na primeira categoria, a iniciativa que mais ganhou notoriedade foi a proposta de pesquisadores de Yale e de Columbia (Estes et al., 2005) de construção de um Índice de Sustentabilidade Ambiental (ESI na sigla em inglês) e de um Índice de Desempenho Ambiental (EPI na sigla em inglês). O primeiro contém 76 variáveis que cobrem cinco dimensões. O segundo agrega as mesmas 76 variáveis em 21 indicadores intermediários. Por mais que sejam maneiras razoáveis de reunir um grande número de informações e de servir como convite para que se dê mais atenção a alguns de seus componentes, todos esses tipos de exercício são altamente precários de um ponto de vista estritamente estatístico. Ainda mais quando misturam variáveis de caráter objetivo, como a taxa de mortalidade infantil, com variáveis de tipo subjetivo, como uma nota atribuída à qualidade das agências ambientais de cada país…
Entre os indicadores focados no grau de pressão sobre os recursos, dois bem diferentes adquiriram grande visibilidade: a Poupança Líquida Ajustada (ANS na sigla em inglês) e a famosa Pegada Ecológica (Ecological Footprint).
A ANS, também conhecida como poupança genuína, ou genuíno investimento, é um indicador inteiramente voltado à avaliação de estoques de riqueza, em vez de fluxos de renda, de consumo ou de produção (World Bank, 2006). Sua raiz teórica está na ideia de que a sustentabilidade requer essencialmente a manutenção de um constante estoque de riqueza ampliada (extended wealth). Estoque que agrega recursos naturais, capital físico/produtivo e capital humano. O que supõe, é claro, que entre eles haja integral possibilidade de substituição, ideia das mais controversas. E apesar de todos os esforços apoiados pelo Banco Mundial, essa abordagem esbarra no imenso obstáculo metodológico da precificação de muitos ativos fundamentais, especialmente de recursos naturais estratégicos. Por isso, os resultados não têm sido nem um pouco convincentes ou persuasivos.
O inverso ocorre com a Pegada Ecológica, pois não envolve os malabarismos exigidos pelas abordagens monetárias, além de transmitir uma noção que pode ser facilmente assimilada pelo público preocupado em encontrar bons indicadores de sustentabilidade. Só pretende mostrar quanto da capacidade regenerativa da biosfera está sendo usada em atividades humanas (consumo).
Proposto inicialmente por Wackernagel & Rees (1995), esse indicador tem sido promovido pelo Global Footprint Network, pelo Redefining Progress e também pelo WWF, que publica as atualizações em seu relatório anual Living Planet Report. No entanto, a aparente simplicidade da Pegada Ecológica também esconde sérios problemas técnicos que foram enfatizados em três recentíssimos relatórios: CGDD (2009), Le Clézio (2009) e Stiglitz-Sen-Fitoussi (2009).
Não faltam incoerências na metodologia da pegada. Por exemplo: a biocapacidade de uma área cultivada é aferida pelo rendimento observado, quando deveria ser aferida pelo rendimento que permitiria manter constante a fertilidade desse solo no futuro, isto é, seu rendimento “sustentável”. O mesmo ocorre com a avaliação da biocapacidade das pastagens. Assim, em âmbito nacional, o déficit ecológico dessas terras sempre será equivalente ao déficit comercial do setor. E em nível mundial nunca haverá déficit ou superávit ecológico relativo à agropecuária. Esse foi um dos principais argumentos de Bergh & Verbruggen (1999) para afirmar ser inerente à pegada um viés contrário ao comércio internacional. A inversa biocapacidade de países com altas ou baixas densidades populacionais – como a Holanda e a Finlândia – os leva a trocas comerciais que não podem ser entendidas como indicadores de insustentabilidade, a menos que se pretenda alguma autonomia autarca.
Não é por outro motivo que versões mais recentes da metodologia de cálculo da pegada enfatizam que o superávit ecológico de uma nação não pode ser entendido como critério de sustentabilidade. Mais do que isso, autores da metodologia passaram a insistir que a pegada de cada país seja comparada à biocapacidade global em vez da nacional (Moran et al., 2008). E isso obriga, então, que a pegada ecológica seja entendida como um indicador da contribuição dada à insustentabilidade global, em vez de um indicador de sustentabilidade deste ou daquele país, região ou localidade.
Há deficiências semelhantes nos métodos de cálculos relativos às áreas construídas, às áreas florestais e à pesca. No entanto, mais importante do que criticá-las é chamar a atenção para o fato de que na concepção da pegada acaba existindo uma ponderação subjacente ou intrínseca. Será razoável admitir que a importância relativa das florestas seja de apenas 9% e o da pesca de reles 3%? De resto, por essa concepção admite-se que uma substituição de florestas por terras cultivadas aumentaria a biocapacidade disponível, aliviando, então, o déficit ecológico, o que não faz nenhum sentido.
Por essas e outras razões, o que é preciso reter é a ideia básica de medir as várias pressões humanas sobre os ecossistemas para compará-las à sua capacidade de suporte. Mas sem agregá-las. Ou seja, comparar, por exemplo, emissões de carbono com a área de floresta que seria necessária para absorvê-las.
Finalmente, esta enxuta apresentação dos três movimentos paralelos não poderia deixar de incluir menção ao esforço de construção de contas ambientais acopláveis ao sistema de contabilidade nacional (green accounting). Pois bem, em 2007, a revista Ecological Economics (61) foi consagrada ao Seea-2003 (System of Environmental and Economic Accounts), mostrando que as antigas controvérsias sobre esse projeto tendem a aumentar em vez de diminuir.

A segunda grande virada em setembro de 2009
Não é mais possível falar a sério de indicadores de sustentabilidade sem ter como ponto de partida as mensagens e recomendações que estão no Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress (Stiglitz-Sen-Fitoussi, 2009).
A primeira grande contribuição dessa Comissão já foi mostrar com muita clareza que existem três problemas bem diferentes, que não deveriam ter sido misturados nem isolados, como fizeram todos os indicadores ao longo de quase 40 anos. Uma coisa é medir desempenho econômico, outra é medir qualidade de vida (ou bem-estar), e uma terceira é medir a sustentabilidade do desenvolvimento. E para essas três questões o relatório deu orientações muito mais radicais do que supunham quase todos os observadores:
1) O PIB (ou PNB) deve ser inteiramente substituído por uma medida bem precisa de renda domiciliar disponível, e não de produto;
2) A qualidade de vida só pode ser medida por um índice composto bem sofisticado, que incorpore até mesmo as recentes descobertas desse novo ramo que é a economia da felicidade;
3) A sustentabilidade exige um pequeno grupo de indicadores físicos, e não de malabarismos que artificialmente tentam precificar coisas que não são mercadorias.
Em outras palavras, o relatório propõe a superação da contabilidade produtivista, a abertura do leque da qualidade de vida e todo o pragmatismo possível com a sustentabilidade. Como as duas primeiras questões não fazem parte do escopo central deste artigo, o leitor mais interessado poderá consultar o quarto capítulo de Veiga (2009b), que contém um resumo do conjunto do relatório. Contudo, é importante que não se perca de vista que as recomendações sobre a sustentabilidade supõem que o desempenho econômico e a qualidade de vida também sejam medidos por novos indicadores. Indicadores que nada têm a ver com os atuais PIB e IDH.
A Comissão optou por tratar a sustentabilidade de forma muito mais ampla do que costuma sugerir o adjetivo “sustentável” quando aposto a qualquer outro termo. Por exemplo, quando diz que os já difíceis pressupostos e escolhas normativas ficam ainda mais complicados pela existência de “interações entre modelos sócio-econômicos e ambientais seguidos por diferentes países” (§192, p.77). Ou quando se refere a um “componente ‘econômico’ da sustentabilidade” relativo ao “sobreconsumo de riqueza” (§198, p.78).
É preciso lembrar que, na origem, a ideia expressa pelo adjetivo sustentável se referia à necessidade de que o processo socioeconômico conservasse suas bases naturais ou sua biocapacidade. Foi no progressivo abandono do qualificativo em favor do substantivo que surgiu essa ideia de “componentes” não biofísicos da sustentabilidade. E isso tem várias implicações, especialmente quando a biocapacidade passa a ser entendida como um capital (natural) ao lado de capitais humanos/sociais e físicos/construídos.
Ou seja, em vez de se enfatizar a imprescindível sustentabilidade ambiental do processo que se costuma chamar de desenvolvimento ou de progresso social, passa-se a tratá-la ao lado de várias outras, cuja lista pode ser bem longa, contribuindo para uma séria diluição da ideia original. Um bom exemplo está na já mencionada abordagem tripartite Unece/OECD/Eurostat (2008). Nela os indicadores são separados em dois exclusivos “domínios”: um chamado de “bem-estar de fundo” (foundational well-being) e outro chamado de “bem-estar econômico”. E indicadores normalmente considerados ambientais estão distribuídos por esses dois domínios. No primeiro, surgem desvios de temperatura, concentrações de ozônio e particulados, disponibilidade de água, ou fragmentação dos hábitats naturais, junto com indicadores de educação e de expectativa de vida ajustada pela saúde. No segundo, indicadores de recursos energéticos, minerais, madeireiros e marinhos, junto com indicadores de capitais (produzido, humano e natural) e de investimentos externos. Ou seja, o conjunto de indicadores de desenvolvimento sustentável proposto por esse grupo de trabalho consorcia dois grupos: um socioambiental com seis, e outro econômico-ecológico com oito (Box 3, p.80-1).
A mais importante orientação do relatório sobre sustentabilidade foi enfatizar que qualquer indicador monetário deve permanecer focado apenas em seus aspectos estritamente econômicos. Não apenas porque grande parte dos elementos que interessam não tem preços definidos por mercados. Também porque mesmo para os tenham, não há nenhuma garantia que os preços revelem a sua importância para o bem-estar futuro (§197, p.78).
Ou seja, contrariamente ao que parecia sugerir o rascunho do relatório lançado no início de junho de 2009,7 em seu relatório final a Comissão acabou por tomar distância da abordagem que vem sendo promovida pelo Banco Mundial (ANS: Adjusted Net Savings). A grande concordância é que o conjunto de indicadores que poderá mensurar a sustentabilidade deve informar sobre as variações de estoques que escoram o bem-estar humano. Mas a maior ênfase do relatório final da Comissão está na absoluta necessidade de que os aspectos propriamente ambientais da sustentabilidade sejam acompanhados pelo uso de indicadores físicos bem escolhidos. E é o “princípio da precaução” que a Comissão evoca para justificar essa ênfase, “dado nosso estado de ignorância” (§199, p.79).
O recado é claro: buscar bons indicadores não monetários da aproximação de níveis perigosos de danos ambientais, como os que estão associados à mudança climática. É possível deduzir, então, que, se as emissões de carbono das economias viessem a ser bem calculadas, poderiam ser os indicadores das contribuições nacionais à insustentabilidade global. Melhor ainda se surgissem medidas parecidas para o comprometimento dos recursos hídricos e para a erosão de biodiversidade. Talvez bastasse essa trinca para mostrar a que distância se está do caminho da sustentabilidade.
Por último, mas não menos importante, uma definição de sustentabilidade perdida na página 250: “[...] a questão é sobre o que nós deixamos para as futuras gerações e se lhes deixamos suficientes recursos de todos os tipos para que possam desfrutar de oportunidades ao menos equivalentes às que tivemos”.8
Em resumo, estas são as mensagens e recomendações do relatório que se referem aos indicadores de sustentabilidade:
Mensagem 1: Medir sustentabilidade difere da prática estatística standard em uma questão fundamental: para que seja adequada, são necessárias projeções e não apenas observações.
Mensagem 2: Medir sustentabilidade também exige necessariamente algumas respostas prévias a questões normativas. Também nesse aspecto há forte diferença com a atividade estatística standard.
Mensagem 3: Medir sustentabilidade também envolve outra dificuldade no contexto internacional. Pois não se trata apenas de avaliar sustentabilidades de cada país em separado. Como o problema é global, sobretudo em sua dimensão ambiental, o que realmente mais interessa é a contribuição que cada país pode estar dando para a insustentabilidade global.
Recomendações: a) a avaliação da sustentabilidade requer um pequeno conjunto bem escolhido de indicadores, bem diferente dos que podem avaliar qualidade de vida e desempenho econômico; b) característica fundamental dos componentes desse conjunto deve ser a possibilidade de interpretá-los como variações de estoques e não de fluxos; c) um índice monetário de sustentabilidade até pode fazer parte, mas deve permanecer exclusivamente focado na dimensão estritamente econômica da sustentabilidade; d) os aspectos ambientais da sustentabilidade exigem acompanhamento específico por indicadores físicos.

Conclusão
Mesmo que não esteja de acordo com as recomendações de Patterson (2002, 2006), a descrição retrospectiva feita neste artigo confirma a linha geral de sua proposta, recentemente fortalecida pelo relatório final da Comissão Stiglitz-Sem-Fitoussi (2009).
A avaliação, a mensuração e o monitoramento da sustentabilidade exigirão necessariamente um trinca de indicadores, pois é estatisticamente impensável fundir em um mesmo índice apenas duas de suas três dimensões. A resiliência dos ecossistemas certamente poderá ser expressa por indicadores não monetários relativos, por exemplo, às emissões de carbono, à biodiversidade e à segurança hídrica. Mas o grau de tal resiliência ecossistêmica não dirá muito sobre a sustentabilidade se não puder ser cotejado a dois outros. Primeiro, o desempenho econômico não poderá continuar a ser avaliado com o velho viés produtivista, e sim por medida da renda familiar disponível. Segundo, será necessária uma medida de qualidade de vida (ou bem-estar) que incorpore as evidências científicas desse novo ramo que é a economia da felicidade.

Notas
1 (“We must acquire a life style which has as its goal maximum freedom and happiness for the individual, not a maximum Gross National Product“.) Embora esteja citada entre aspas, não há no texto de Nordhaus & Tobin nenhuma referência bibliográfica sobre a afirmação de Erlich. Aliás, ele nem é identificado como ecólogo. Talvez porque à época ele estivesse em grande evidência e suas palavras tenham sido pinçadas de algum jornal ou revista de grande circulação.
2 Sociedade afluente, de John Kenneth Galbraith, foi traduzido no mesmo ano de 1958 pela Editora Expressão e Cultura, do Rio de Janeiro. The cost of economic growth, de Ezra J. Mishan, publicado em 1967 pela Editora F. A. Praeger, de Nova York, só foi traduzido em 1976 com o título Desenvolvimento. A que preço? pela Ibrasa, de São Paulo. Do lado oposto, Wilfred Beckerman começou em 1971 com o artigo “Why we need economic growth?”, na Lloyds Bank Review, v.102, p.1-15.
3 O alemão Karl William Kapp foi o primeiro, com The Social Costs of Business Enterprise, de 1963, pela Editora Asia Books. Em 1966, foi a vez de Geogescu-Roegen e de Kenneth Boulding. Georgescu antecipou, em longa introdução a seu primeiro livro Analytical Economics, as ideias desenvolvidas no livro The Entropy Law and the Economic Process, de 1971, ambos publicados pela Harvard University Press. Boulding publicou uns trinta livros entre 1941 e 1993, mas também é de 1966 sua primeira grande contribuição: “The economics of the coming spaceship Earth” (in Jarett, 1966).
4 É interessante notar que o adjetivo “sustentável” para qualificar o desenvolvimento só começou a ser usado nos debates internacionais sete anos depois (1979). Aliás, só foi amplamente divulgado a partir de 1987, como a publicação do relatório “Nosso futuro comum”, da Comissão Brundtland, e consagrado somente em 1992, com a célebre Conferência do Rio. No ano seguinte à publicação do trabalho de Nordhaus & Tobin, surgiu, como se sabe, uma tentativa frustrada de usar a expressão “ecodesenvolvimento”.
5 O relatório sobre o NNW foi publicado em 1974 pelo Ministério das Finanças do Japão (disponível em: <http://openlibrary.org/b/OL4284823M/Measuring_net_national_welfare_of_Japan>). Inspirou-se no pioneiro trabalho de Nordhaus & Tobin para calcular o NNW anual do período 1955-1970, quando houve fortíssimo crescimento econômico. Mas sem desprezar inteiramente certos danos ambientais e com acréscimo de um tópico sobre o custo dos acidentes rodoviários. Nos primeiros cinco anos, a discrepância foi bem significativa: aumento anual médio de 8,9% do PIB contra apenas 6,3% do NNW. Mas nos últimos cinco anos ela diminuiu bastante: 14,9% contra 13,5%, respectivamente.
6 O livro de Zolotas, Economic Growth and Declining Social Welfare, foi publicado em 1981 pela New York University Press. Propôs um Índice dos Aspectos Econômicos do Bem-estar (EAW na sigla em inglês), bem parecido com o MEW de Nordhaus & Tobin. Seus cálculos foram até 1977 e revelaram aumento da discrepância entre as taxas de crescimento do PIB e de seu EAW.
7 CMEPSP – Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress – Draft Summary (Provisional and Incomplete), June 2, 2009.
8 “[...] the sustainability issue is about what we leave to future generations and whether we leave enough resources of all kinds to provide them with opportunity sets at least as large as the ones we have had ourselves” (p.250).

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José Eli da Veiga é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP) e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI). @ - zeeli@usp.br Página webwww.zeeli.pro.br

Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.24 no.68 São Paulo 2010

EcoDebate, 16/05/2013

 
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