Para o sociólogo e filósofo Edgar Morin, veterano da Resistência
Francesa durante a Segunda Guerra, transformações invisíveis que acontecem
neste momento em nossa sociedade escondem as sementes da construção do
improvável. “Entre a desilusão e o encantamento existe uma via que é a da
vontade e da esperança”, anuncia.
Edgar
Morin, pseudônimo de Edgar Nahoum, nasceu em Paris, em 8 de julho de 1921.
Fez seus estudos universitários em História, Sociologia, Economia e
Filosofia. Licenciou-se em História, Geografia e Direito. Durante a Segunda
Guerra Mundial, participou ativamente da Resistência Francesa. É diretor de
pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em
francês). Em 1991, tornou-se codiretor do Centro de Estudos
Transdisciplinares de Sociologia, Antropologia e História (Cetsah) − tutelado
pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e pelo CNRS −, que em 2008
passou a se chamar Centro Edgar Morin. Doutor honoris causa por
mais de trinta universidades e premiado internacionalmente, durante vinte
anos Morin consagrou-se à pesquisa de um método apto a encarar o desafio da
complexidade que se impõe na contemporaneidade não apenas ao conhecimento
científico, mas também aos problemas humanos, sociais e políticos. Essa
pesquisa culmina com a proposta de uma reforma do pensamento apresentada por
meio de seus livros divididos em macrotemas. Com mais de 60 livros
publicados, destacam-se O
método, em seis volumes, Ciência
com consciência,Introdução
ao pensamento complexo e Os sete saberes necessários para uma educação do futuro.
LE
MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL– O senhor tem o costume de dizer que não
sabe sobre o futuro. Mas, em um de seus diários, o senhor diz que está
pessimista com o futuro, o futuro da humanidade, e que as probabilidades não
são boas − por isso mesmo é necessário acreditar nas improbabilidades. Essa é
uma questão muito importante, porque as improbabilidades acontecem em
contextos históricos. Como nós pudemos ver na Primavera Árabe, as revoluções
não conseguem garantir novos governos democráticos e populares. Para que
surgissem governos democráticos e populares em alguns países da América
Latina, movimentos sociais e redes de cidadania construídas ao longo de mais
de trinta anos atuaram de maneira muito importante. Um mundo em transformação
requer um projeto de transformação e uma rede de sustentação social e
política desse projeto. E nós sabemos que o novo não nasce do nada, nasce de
mudanças qualitativas, de saltos às vezes imprevisíveis que apontam um
sentido comum, mas que partem da realidade atual. Isso também coloca a questão
de um programa de transição. Mas, mais do que tudo, coloca a questão de quem
serão esses novos atores que vão operar essas mudanças.
EDGAR
MORIN –
Em primeiro lugar, é preciso definir o que é probabilidade. Para um
observador situado em um lugar e em um tempo dados, o conhecimento do
processo histórico no qual se encontra é o que lhe permite projetar o futuro.
Se hoje projetamos o futuro, o que vemos? Vemos a proliferação dos artefatos
nucleares, a degradação da biosfera, uma economia cada vez mais em crise, o
crescimento da desigualdade, toda uma série de desastres. Há também alguns
processos positivos, mas eles permanecem invisíveis ou são pontuais. O
improvável já ocorreu na história da humanidade. O provável não é definido,
permanece incerto. Nós podemos observá-lo em diferentes épocas da história.
Eu o vi em 1941, quando havia uma grande probabilidade de dominação nazista
por toda a Europa. Os soviéticos, com a defesa de Moscou, e os japoneses,
bombardeando Pearl Harbor, o que forçou a entrada dos Estados Unidos na
guerra, fizeram as probabilidades mudar. Isso para dizer que, quando as
probabilidades são negativas, eu não fico desesperado, eu me ponho em defesa
de um programa.
Não
acredito que se deva pensar em um projeto de sociedade; é necessário, sim,
indicar um caminho. É essa a dificuldade. Quanto ao programa de transição,
que conheci através de Trotsky, bem, não acredito em programas, mas em
estratégias. É que um programa já está determinado antes mesmo da caminhada,
e o caminho é uma corrente que vai no sentido favorável. Vamos avaliar a
situação: será que podemos mudar o caminho? Aparentemente não.
Ao
longo da história, podemos identificar que ocorreram mudanças de caminho a
partir de acontecimentos isolados, menores, invisíveis, como as mensagens de
Buda, de Jesus, de Maomé, ou mesmo o socialismo, que no século XIX tinha
Marx, tinha Proudhon, que difundiram ideias que dezenas de anos depois se
transformaram em forças muito importantes, gerando tanto a social-democracia
como o comunismo. Portanto, sempre houve um início modesto das novas forças.
Podemos recorrer à velha noção de história, que caminha também por seus
canais subterrâneos, que sempre está em movimento, que o presente não está
imóvel e que nele atuam forças de transformação invisíveis. De resto, quando
você pensa na descoberta da energia atômica, percebe que foi uma descoberta
totalmente invisível, uma descoberta especulativa, intelectual, do exercício
de pesquisa de alguns físicos. E dez anos depois essa energia se transforma
em bombas de destruição. Portanto, existem muitas coisas que estão
invisíveis, o futuro não é previsível, é preciso resistir e construir o
improvável.
Um
pouco por toda parte existem iniciativas muito importantes, dispersas em
relação umas às outras. Há experiências na agricultura, na agroecologia, na
biologia, na educação, nas cooperativas, há a economia que chamamos de social
e solidária. Temos a necessidade de recusar a grande agricultura capitalista
industrializada para defender os pequenos proprietários rurais e a
agricultura familiar; há uma luta contra os atravessadores, os
intermediários; há muitas frentes que se criam em todos os domínios, o que
demonstra que tudo pode ser reformado. Tudo: a justiça, a conservação, a
produção. Mas eu digo também que esses processos, que começam localmente e se
firmam, devem confluir.
O que é
preciso reformar? As estruturas sociais e econômicas? Ou as pessoas e a
moral? Eu digo que esses processos têm de vir juntos. Porque, se você reforma
somente as estruturas, você chega à situação da União Soviética. Mas, se você
propõe caminhos individuais ou comunitários, eles fracassam depois de alguns
anos. Operando nos dois planos, essa corrente conflui para criar o novo. O
grande problema é a metamorfose − prefiro a palavra metamorfose à palavra
revolução −, pois penso que em um momento dado, quando um sistema não é mais
capaz de tratar suas questões vitais, ou ele se desintegra, ou regride e se
torna ainda mais bárbaro, ou é capaz de criar um metassistema, que recicla
seu projeto. A metamorfose existe não somente nos insetos, que se transformam
em borboletas, mas também na história. A Europa se metamorfoseou da Europa
medieval, feudal, religiosa, para a Europa moderna, contemporânea. A
metamorfose é possível e torna possível criarmos um novo modo de
desenvolvimento e um novo tipo de sociedade que não podemos prever, mas que
ultrapassa as expectativas dos indivíduos e da sociedade atual. Penso que é
isso que podemos esperar, mesmo que hoje não sejamos capazes de descrever ou
imaginar essa futura sociedade.
DIPLOMATIQUE – Uma pesquisa feita
pela Secretaria de Economia Solidária, do governo federal, identificou mais
de 42 mil experiências de economia solidária no país. Veja que em nossa
sociedade já há sinais de transformação. Mas, paralelamente, existe tal poder
no mundo atual − eu falo do poder do sistema financeiro, das grandes
corporações −, que mesmo a The
Economist assinala que é preciso mudar essa situação. A
revista lança um desafio aos governantes: buscar um modelo que contemple, ao
mesmo tempo, o crescimento e uma maior redistribuição da riqueza. É uma
discussão da transformação e reforma do capitalismo no sentido de manter as
estruturas de poder e buscar a estabilidade política promovendo um pouco mais
de distribuição da riqueza. É possível pensar nessa metamorfose com esses
grandes poderes financeiros que controlam o mundo?
MORIN
– Parece-me
que a grande dificuldade de lutar contra a dominação do capitalismo
financeiro e contra a especulação financeira é que isso só pode ser feito em nível
internacional. Por exemplo, para suprimir os paraísos fiscais é necessário
que todos os países se ponham de acordo, assim como para taxar a especulação
financeira. Penso que há duas ameaças que atemorizam o mundo: uma delas é o
capitalismo financeiro, a dominação financeira; a outra é o fanatismo
étnico-religioso. Eles se alimentam uns dos outros. A questão das
transnacionais está colocada e isso só pode ser tratado em escala planetária.
A tragédia é que sofremos da ausência de instituições planetárias dotadas de
poder de decisão. O fracasso da Rio+20 criou uma desilusão enorme. É por isso
que não progredimos no desenvolvimento da noção de um destino comum para a
comunidade terrestre.
Mesmo
considerando a ideia de solidariedade internacional que existia, sendo ela
socialista, comunista ou libertária, essas ideias não progrediram para
enfrentar a situação atual. Agora, quais são as forças sociais que podem
agir? Não podemos mais pensar que seja a classe operária, industrial. Em
minha opinião, é a boa vontade dos homens, das mulheres, dos jovens e dos
velhos, que vão confluir nessa tomada de consciência. E, bem entendido, esse
é o destino dos povos que são dominados, oprimidos, e que querem conquistar
sua emancipação. E que vão contribuir para o processo de emancipação.
Você
falou da Primavera Árabe, que era imprevista, improvável. Desde o início
saudei esses acontecimentos com entusiasmo. Escrevi um artigo no Le Mondeem que dizia
para pensarmos em 1789: foi uma primavera maravilhosa, mas o que aconteceu depois?
Aconteceu o Terror, o Termidor, Bonaparte, o Império, o retorno do rei e a
revolução de 1848, e depois novamente o Império, e a França só chegou à
República no século XX. Há aí uma mensagem: se regenerar no curso da
história. Haverá regressões, manipulações, traições, mas a questão é saber se
esses governos eleitos e de tendência extremista vão respeitar ou não as
regras da democracia. Somos desafiados a ter esse mesmo papel histórico que a
Primavera Árabe. Reconheço que as forças de transformação para criar uma nova
situação para o planeta são muito débeis, estão dispersas, mas há momentos de
aceleração e de amplificação que precisam ser considerados.
DIPLOMATIQUE
– Mas
a Primavera Árabe demonstra também que, mesmo se tivermos irrupções sociais
fortes de movimentos sociais, as acomodações políticas que buscam a
estabilidade colocam os conservadores no governo. Vejo que Immanuel
Wallerstein está de acordo com o senhor quando diz que ainda teremos de
enfrentar muitas crises para abrir o caminho para uma sociedade
pós-capitalista.
MORIN– Sim, mas
quero dizer que as forças energéticas da juventude na Tunísia e no Egito
foram capazes de questionar o sistema atual, mas continuam incapazes de
anunciar o novo caminho político. E estão divididas. O que faz falta é um
pensamento político. A situação demanda um pensamento que não seja somente
analítico, mas dê uma direção, um caminho. Hoje, há uma esterilidade total e
geral não somente no mundo árabe ou muçulmano, mas também na França. Há uma
crise do pensamento político, da capacidade de análise na sociologia mundial.
E esse é um fator da impotência atual. É preciso recuperar o pensamento.
Jamais haveria o socialismo sem o pensamento de Marx; jamais teríamos um
libertarismo sem a contribuição de Kropotkin.
DIPLOMATIQUE
– O
neoliberalismo, nos anos 1990, terminou com a discussão sobre o futuro. Sua
preocupação era administrar a situação presente e melhorar a condição dos
mais pobres. Por conta disso não temos uma referência atual, seja do que
possa ser a esquerda, seja do que possa ser um programa de transformação no
sentido de construir um projeto comum entre os grupos que são diferenciados,
mas reivindicam o papel da resistência. Qual é o meio de unificar essas
diferenças?
MORIN
– O
neoliberalismo está em crise. Ele se apresentava como uma ciência, mas hoje
sabemos que é uma ideologia. E assistimos à crise gerada por ele. O problema
é que sabemos fazer a denúncia, mas não sabemos enunciar o que queremos, qual
é o novo caminho. E precisamos caminhar no sentido de construir esse novo
caminho comum. Por exemplo, existe todo um conjunto de pequenos camponeses
ameaçados pela grande indústria, os pequenos artesãos, o mundo operário − por
todos os lados as pessoas são exploradas, alienadas, e tomarão consciência
disso. Quando elas tomam consciência − e hoje em dia temos de defender a
diversidade, não somente a biodiversidade, mas a diversidade das sociedades
−, neste momento estamos no começo de um novo caminho. Não podemos nos
iludir, mas também não podemos entrar na desilusão. Entre a desilusão e o
encantamento existe uma via que é a da vontade e da esperança.
DIPLOMATIQUE– Qual é a
mensagem que o senhor quer dirigir à juventude?
MORIN–
Frequentemente, os jovens franceses vêm me encontrar e me dizem que tenho
sorte porque, quando eu militava na Resistência, tinha uma causa justa, uma
causa bela, que hoje eles não têm. Sua percepção é de que vivemos na
precariedade, não temos cultura, futuro algum. E eu lhes respondo que nossa
causa tem suas sombras, que não víamos na sua época. Nós libertamos a França
em nome da liberdade e contra a dominação. E reafirmamos a dominação sobre a
Argélia e sobre nossas colônias. A segunda coisa, eu era comunista; é preciso
considerar que Stalingrado foi a maior vitória e a maior derrota. A maior
vitória porque barrou o nazismo. A maior derrota porque deu espaço para o
stalinismo.
Hoje há
uma causa que, em nome da liberdade e contra a dominação, não tem nome; é a
causa de toda a humanidade, de todos os povos, de todos os continentes. A
humanidade está ameaçada por toda essa loucura, pela busca do lucro, por toda
essa insanidade fanática. Minha recomendação é que, aí onde você está, lute
pelas mutações, quer elas tenham dimensão global ou local. O desenvolvimento
local favorece a melhoria global e a melhoria global favorece o
desenvolvimento local. É este o desafio atual: tomar consciência do que hoje
são os problemas e se engajar para enfrentá-los. É isso que eu quero dizer
para a juventude.
Silvio
Caccia Bava
Diretor
e editor-chefe do Le
Monde Diplomatique Brasil
Enviado por Guilherme Carvalho
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