A crise
alimentar não é uma crise apenas alimentar, mas uma crise de sistema, ou seja,
estrutural, que está relacionada com a concentração da produção de commodities
e com o abastecimento de alimentos nas grandes cadeias de supermercados”,
afirma a Secretária Executiva do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional – FBSSAN.
Questionar
“que alimentos estamos comendo ou não estamos comendo” permite entender “como o
sistema alimentar se estrutura e determina o que as pessoas comem ou deixam de
comer”, aponta Vanessa Schottz à IHU On-Line. Secretária Executiva do Fórum
Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – FBSSAN, ela chama
a atenção para a “padronização dos alimentos, que passam por um processo de
industrialização crescente, tornando esses alimentos artificiais”.
Na
entrevista a seguir, concedida por telefone, ela propõe rediscutir o conceito
de qualidade e segurança em voga no código sanitário brasileiro. A qualidade
dos alimentos, ressalta, “não pode ficar restrita a essa visão de assepsia e de
somatória de nutrientes. (...) Temos de pensar numa perspectiva de assegurar o
acesso das pessoas à alimentação em quantidade, mas também em qualidade. Não
podemos falar de qualquer alimento, mas sim de alimentos que promovam a saúde,
a segurança alimentar e nutricional. Por isso, enxergamos a Política Nacional
de Agroecologia, lançada recentemente, como uma política que precisa ser
fortalecida para apoiar a transição desse modelo”.
Vanessa
Schottz é secretária Executiva do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional – FBSSAN.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line
– Quais foram as discussões centrais do 7º Encontro Nacional do Fórum
Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – FBSSAN?
Vanessa Schottz – O encontro centralizou a discussão em torno
da questão: Que alimentos estamos comendo ou não estamos comendo? Essa
discussão tem várias possibilidades de reflexão. Entre elas, entender como o
sistema alimentar se estrutura e determina o que as pessoas comem ou deixam de
comer. Diante desta reflexão, concluímos que a crise alimentar não é uma crise
apenas alimentar, mas uma crise de sistema, ou seja, estrutural, que está
relacionada com a concentração da produção de commodities e com o abastecimento
de alimentos nas grandes cadeias de supermercados.
Quando nos
questionamos sobre quais alimentos estamos comendo, nos damos conta do processo
de envenenamento, uma vez que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do
mundo e, a reboque, de transgênicos. Ao mesmo tempo, percebemos que tem um
processo de padronização dos alimentos, que passam por um processo de
industrialização crescente, tornando esses mesmos alimentos artificiais.
Discutimos
também as normas sanitárias brasileiras, as quais tratam a pequena produção, os
alimentos artesanais e tradicionais como indústria. Isso resulta num processo
de padronização, que vai contra a soberania alimentar. Não defendemos uma
flexibilização da norma, para que tenha uma perda na qualidade dos alimentos.
Pelo contrário, queremos rediscutir esse conceito de qualidade e segurança em
voga no atual Código Sanitário brasileiro, porque a qualidade dos alimentos
também está relacionada com a contaminação dos agrotóxicos, com a produção de
alimentos transgênicos. A qualidade não pode ficar restrita a essa visão de
assepsia e de somatória de nutrientes. Precisam ter normas adequadas para a
produção familiar, artesanal e tradicional, de forma a permitir que os
consumidores consigam ter acesso a esses alimentos.
IHU On-Line – Em que consiste a compreensão do alimento
como patrimônio cultural?
Vanessa Schottz – Nós valorizamos e fortalecemos a iniciativa
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN em reconhecer
alguns ofícios, como o das baianas, que fazem o acarajé, e todo esse processo
produtivo como um patrimônio do Brasil. Então, defendemos que, como a comida
faz parte de um patrimônio histórico de um povo, todo o modo de fazer precisa
ser reconhecido como um patrimônio cultural, imaterial e protegido para que não
ocorra um processo sem precedente de padronização. A relação da dimensão cultural
com a segurança alimentar e nutricional é um tema que ainda precisa ser
explorado, mas que pode ser estruturante na medida em que nos ajuda a discutir
o processo de produção alimentar, uma vez que, quando estamos falando desses
alimentos tradicionais, estamos falando de um modo de saber fazer que é único,
que tem a ver com o saber fazer que se passa de geração em geração e que tem
tudo a ver com a identidade cultural, com o local, com o bioma.
O processo
de expropriação do território indígena, de desestruturação dos modos de vida
das comunidades, são ações que ferem a soberania alimentar e fazem com que
perdemos o nosso patrimônio alimentar, seja pela extinção de alguns alimentos,
seja pela tomada dos territórios pela monocultura. A comida é central para a
construção da identidade dos povos, e todo esse processo de padronização
alimentar que vem acontecendo também contribui para a perda da diversidade e
para a padronização da cultura.
IHU On-Line – Como avalia o processo de produção de
alimentos no país?
Vanessa Schottz – Ao fazer uma análise do sistema alimentar,
percebemos que tem havido cada vez mais um aumento da produção de commodities,
de grãos para a exportação, e isso tem tomado os territórios, aumentado o
consumo de agrotóxicos e o uso de sementes transgênicas. Há uma concentração na
cadeia produtiva de alimentos. Ao mesmo tempo, percebemos que esse processo não
está descolado do consumo. O agronegócio desestrutura os modos de vida e
transforma o lugar em um não lugar.
Ficamos
preocupados ainda com o fato de o Brasil liberar agrotóxicos que foram
proibidos em vários países. Na ponta do consumo, percebemos também que tem uma
estratégia de mídia destinada ao público infantil, que estimula o consumo de
uma série de alimentos que prejudicam a saúde, ricos em açúcar, gordura e
sódio. O encontro apontou o aumento da obesidade no país, especialmente entre
crianças e adolescentes.
IHU On-Line – Que avaliação faz das políticas públicas na
área alimentar?
Vanessa Schottz – A carta política do encontro reconhece que as
políticas públicas na área alimentar tiveram avanços nos últimos anos,
especialmente no enfrentamento de uma das dimensões dos direitos da
alimentação, que é o combate à fome. Foi aprovada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar
e Nutricional em 2006. Conseguimos incluir, em 2011, o direito humano à
alimentação na Constituição Federal. Aprovamos, em 2009, a Lei da Alimentação
Escolar, que obriga os municípios e os estados a utilizarem no mínimo 30% do
valor transferido pelo governo federal para comprar alimentos da agricultura
familiar. Essa política atende mais de 40 milhões de escolares por dia, e faz
desse programa uma ação estruturante para a segurança alimentar porque, por um
lado, fortalece a produção de alimentos e a geração de renda para a agricultura
familiar e, por outro, insere no cardápio escolar uma alimentação saudável,
composta de alimentos frescos como frutas, verduras e hortaliças.
Com isso
podemos dizer que houve alguns avanços importantes no campo institucional da
segurança alimentar, embora permaneçam muitos desafios, como o acesso à terra
aos camponeses, a ocupação dos territórios pelos indígenas e quilombolas,
porque a terra é o maior meio de produção de alimentos. Outro desafio é a
questão de estruturar um novo modelo de produção de alimentos. Entre as
alternativas que estão sendo construídas, tem a agroecologia, que produz
alimentos sem venenos e de forma diversificada, respeitando os biomas e
conservando a biodiversidade. O desafio é fazer a transição do modelo de
produção atual, que é intensivo na mecanização, baseado na monocultura, no uso
intensivo de agrotóxico, para um modelo agroecológico.
A segurança
alimentar nutricional é uma pauta ainda estratégica. E mesmo com os avanços
para enfrentar o problema da fome, ela [a fome] não foi totalmente vencida.
Existe aí um desafio grande que é melhorar a qualidade da alimentação.
Defendemos, portanto, o direito a uma alimentação adequada e saudável. Nesse
aspecto, os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, é uma
estratégia válida para o enfrentamento da pobreza.
IHU On-Line – Quais políticas poderiam reverter o quadro
da fome no mundo?
Vanessa Schottz – Temos de pensar numa perspectiva de assegurar
o acesso das pessoas à alimentação em quantidade, mas também em qualidade. Não
podemos falar de qualquer alimento, mas sim de alimentos que promovam a saúde,
a segurança alimentar e nutricional. Por isso, enxergamos a Política Nacional
de Agroecologia, lançada recentemente, como uma política que precisa ser
fortalecida para apoiar a transição desse modelo.
Também
apostamos na agricultura urbana, ou seja, na produção de alimentos nos espaços
urbanos e teleurbanos. Essa agricultura deve ser valorizada, protegida e
precisa de políticas públicas que a promovam, porque ela cumpre um papel
central na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Seja porque
ela permite o acesso ao alimento pela via do autoconsumo, seja porque ela está
ajudando a discutir a democratização e a redemocratização dos espaços coletivos
e o uso das cidades.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Vanessa Schottz – Gostaria de ressaltar outra pauta importante,
que tem a ver com a leitura que nós fizemos do sistema alimentar: a questão da
regulação da publicidade de alimentos, principalmente aqueles voltados para a
população infantil. Tem uma discussão sobre até que ponto seria censura ou não
regular a publicidade das indústrias. Como entendemos que a publicidade é uma
ação econômica, ela tem fins econômicos e, portanto, é passível de ser regulada
pelo Estado, para que ele possa proteger o direito humano à alimentação e o
direito à saúde, principalmente do público infantil. Consideramos estratégico
avançar na regulação da publicidade de forma a proteger esse público, porque
estudos mostram que a publicidade exerce influência sobre as escolhas
alimentares.
(*) Fonte: Instituto
Humanitas Unisinos.
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