DOSSIÊ AMAZÔNIA - Jornal Le Monde Diplomatique Brasil
por Gerson Teixeira
Sistema Agroflorestal no Trairão-PA de cacau, cupuaçu, babaçu e espécies florestais nativas da Amazônia. Foto:Vânia Carvalho |
As fantásticas oportunidades propiciadas pelas riquezas naturais da
Amazônia caíram como uma luva na agenda desenvolvimentista do governo central.
Nesse projeto, os agricultores familiares participam nas franjas, quando
integrados aos grandes empreendimentos capitalistas de agroenergias e
commodities agropecuárias
Entendemos como agricultores familiares na Amazônia aqueles com traços
sociais constitutivos do campesinato em seus termos clássicos, que mantêm
condutas econômicas por vezes influenciadas por fatores estranhos à
racionalidade capitalista, pautadas nas interações entre economia, tradições e
meio natural, com a dominância do trabalho da família no processo produtivo.
Eles são um amplo mosaico social de agricultores na Amazônia, internamente
diferenciados pelas origens e pelos graus de inserção nos mercados e de
integração com a natureza.
O último Censo Agropecuário do IBGE, de 2006, identificou cerca de 700
mil estabelecimentos familiares (86% do total) ocupando uma área de 25,4
milhões de hectares (22% da área total dos estabelecimentos). Os
estabelecimentos familiares na Amazônia correspondiam naquela data a 16% e 32%,
respectivamente, do número e área dos estabelecimentos familiares do Brasil.
Admite-se que esses agricultores resistem, sobrevivem, residualmente
prosperem, num ambiente de gigantescos e seculares contrastes e iniquidades,
não superados até a presente data; pelo contrário.De um lado, convivem em um
ambiente de fabulosas riquezas naturais distribuídas num vasto território de
514 milhões de hectares. De outro, enfrentam cada vez mais restrições ao acesso
a essas riquezas, incluindo a terra.
Particularmente desde meados da década passada,a Amazônia passou a ser
alvo de vultosos fluxos de capital,produtivo e especulativo,atraídos pelas
potencialidades da região no suprimento dos aquecidos mercados de commodities agropecuárias, florestais,e minerais.
O impulso predatório da expansão desses empreendimentos associado aos
vazamentos da renda líquida regional típicos dos ciclos econômicos do passado
seriam enfrentados: (i) pela consolidação da democracia no país com
desdobramentos no fortalecimento da consciência ambiental; e (ii) pelo papel estratégico
internacionalmente creditado à floresta amazônica para o enfrentamento
dos desafios sistêmicos globais. Incluem-se nesses desafios: o quadro das
mudanças climáticas, a preservação da biodiversidade e, de modo subjacente, a
funcionalidade da região aos esforços pela garantia da segurança alimentar.
Esses argumentos não impediram a prevalência da agenda do
neodesenvolvimentismo em curso, o que tem resultado na expansão acelerada dos
grandes projetos agropecuários, florestais e minerais, para o que colabora
enormemente o quadro de frouxidão regulatória em torno da ocupação territorial
pelo agronegócio,como atestam a recente aprovação do novo Código Florestal e a
persistência da inexistência prática de limites e controles na posse da terra
por pessoas estrangeiras.
A Amazônia também foi definida como a grande fronteira energética do país com base na hidreletricidade. Os profundos impactos negativos desses projetos nos planos ambiental, social, econômico e cultural desarticulam vastos segmentos da agricultura familiar e outros grupos sociais sensíveis.
Mesmo ações recentes de proteção ambiental, como cotas de reserva legal
e títulos de carbono, se destacam muito mais por constituírem ativos de
atrativos mercados com repercussões de monta sobre a estrutura fundiária e
sobre o controle pelo capital externo dos recursos naturais de modo geral.
As fantásticas oportunidades propiciadas pelas riquezas naturais da Amazônia, nos planos interno e externo, caíram como uma luva na agenda desenvolvimentista do governo central. Nesse projeto, os agricultores familiares participam nas franjas, quando integrados aos grandes empreendimentos capitalistas de agroenergias e commodities agropecuárias.
Nas circunstâncias recentes de restauração e consolidação da democracia, não caberia mais a escala das permissividades do projeto levado a cabo no passado, em especial pelos governos militares com a Operação Amazônia da década de 1970. Mas as bases e a ambição do atual projeto de integração profunda da Amazônia à economia global nem de longe encontram similares na história da Amazônia desde as políticas de integração.
Em termos sintéticos, a dimensão rural da estratégia regional busca,
entre outros pontos, a segurança jurídica na posse da terra para os
empreendimentos capitalistas, o que vem sendo perseguido com o Programa Terra
Legal (Lei n.11.952/2009), em que pese sua versão final menos ousada em relação
à proposta original graças às ações dos movimentos sociais. Consta que está em
estudo no governo a recuperação do texto original. Pretende-se também a
flexibilização da legislação ambiental, o que em grande parte foi obtido com a
aprovação do novo Código Florestal.
Para ampliar a competitividade nos mercados asiáticos das commodities há a convergência das obras rodoviárias do Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC) com as da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura
Regional Sul-Americana(IIRSA), para possibilitar a saída pelo Pacífico,
principalmente via Peru.
Abandono da produção dos alimentos básicos
Sob esse forte cerco do capital pelo controle da floresta e do carbono,
da água, dos minérios; enfim, do território, deve ser feita a reflexão sobre o
eventual fortalecimento da agricultura familiar na Amazônia.
Na região Norte, o Censo Agropecuário de 2006 revelou indicadores
socioeconômicos da agricultura de base familiar na Amazônia que suplantavam os
da agricultura não familiar. Em 2006, o valor das receitas obtidas pelos
estabelecimentos agropecuários com produtos vegetais (Norte) foi de R$ 3
bilhões. Desse total, a agricultura familiar participou com 60%.
Do conjunto das atividades agrícolas e não agrícolas processadas no
interior dos estabelecimentos agropecuários da região Norte, a agricultura
familiar, no quesito geração de renda, só não liderou na atividade do turismo rural.
Tomando toda a Amazônia Legal, os estabelecimentos familiares respondiam por
82% do total de 3 milhões de pessoas ocupadas na atividade agropecuária
regional. No Brasil, essa proporção em 2006 foi de 74%.
Em aparente contraste com as adversidades da realidade antes descrita,
as políticas de transferência de renda e de fomento produtivo, notadamente o
crédito e as compras institucionais, colocadas em práticas desde 2003,
tenderiam a amenizar o severo quadro que pressiona a agricultura familiar na
Amazônia. Na verdade, se apresentam como contrapartida para a miniaturização do
programa de reforma agrária em nome da garantia da governabilidade.
Quanto ao fomento produtivo, a oferta de recursos para o crédito rural
na Amazônia aumentou de forma expressiva. De acordo com o Banco Central, em
2002 os financiamentos para os agricultores familiares na Amazônia via Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) envolveram 73 mil
contratos e o valor de R$ 280 milhões. Em 2012, o número de contratos saltou
para 184 mil, mobilizando R$ 2 bilhões. Foram desenvolvidos mercados
institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa
Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que têm crescido de forma continuada,
em que pese suas escalas relativamente ainda pouco significativas vis-à-vis o universo dos agricultores familiares na Amazônia. Junto com
outras ações federais na área da comercialização e da recuperação dos serviços
de assistência técnica, tais medidas geram impactos positivos na economia
camponesa em geral.
Contudo, ante a impossibilidade de uma avaliação mais consistente da
evolução recente da economia agrícola de base familiar, é possível pinçar
alguns indícios preocupantes, de cunho qualitativo.
Primeiro, cumpre destacar, no caso do financiamento produtivo, que ele
tem atendido também a demandas de empresários que não se enquadram no critério
de pertencer à agricultura familiar. O potencial econômico degenerativo do
elevado grau do endividamento desses agricultores junto ao Fundo Constitucional
de Financiamento do Norte (FNO) vem sendo administrado por medidas de
repactuações sucessivas. Os dados mais recentes (out. 2011) mostram que, na
área de abrangência do FNO, o saldo das dívidas rurais alcançava R$ 19,5
bilhões, dos quais mais de R$ 13 bilhões já haviam sido lançados como prejuízo
de acordo com dados do Ministério da Fazenda.
Segundo, a exemplo do fenômeno observado no plano nacional, o crédito,
incluindo o programa Mais Alimentos, que financia máquinas, está concebido para
servir de vetor do processo de modernização conservadora da agricultura
familiar na Amazônia.
Há a indução da replicagem, no universo ainda não “modernizado” desse
segmento, dos padrões de organização e gestão da agricultura do agronegócio, o
que passa pela disseminação da matriz tecnológica da “revolução verde”. É a
modernização conservadora tardia da agricultura familiar.
O que reputo particularmente preocupante do resultado desse esforço de
enquadramento da economia camponesa na região à dinâmica do agronegócio tem
sido o progressivo abandono, por essas pequenas unidades produtivas, da
produção dos alimentos básicos da dieta da população. Exceto na área amazônica
do Maranhão, o número de contratos de custeio de arroz, feijão e mandioca na
região, com recursos do Pronaf, declinou 57% de 2002 para 2012, conforme dados
do Banco Central.
Uma tendência está estabelecida: o enfraquecimento do protagonismo desse
segmento na produção de alimentos básicos, o que desde sempre tem sido o
atributo político distintivo do papel social da agricultura familiar. Trata-se
de um processo que se manifesta em nível nacional, o que explica a pressão dos
preços dos alimentos no atual repique do processo inflacionário no Brasil.
Gerson Teixeira
Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1563
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